"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

sábado, 1 de abril de 2017

Minha casa

Meu sofá é na verdade um banco de madeira
Para que as visitas não se sintam confortáveis demais
Não que eu não goste de visitas
Eu gosto, você pode entrar
Fique à vontade
Use o que precisar, faça o que quiser
Mas minha casa é feita para que você não se sinta tão confortável
Então talvez seu corpo doa com o tempo
Talvez você tenha vontade de se levantar
E ir embora
Eu vou sorrir e fechar a porta atrás de você
Porque na realidade você não era bem-vindo
Mas eu deixo as pessoas entrarem
Talvez por educação
Talvez por ser gentil
Talvez porque eu me sinta sozinha por um minuto
E depois esse minuto passa
Não importa, só entre
E saia
Para que o próximo venha

sábado, 25 de março de 2017

Coisas que ninguém te diz

É um assunto delicado. É sobre psiquiatria.
Eu vejo muitas pessoas falando sobre doenças mentais, sobre o quão importante é tomar seus remédios religiosamente. Fala-se muito mais em tomar remédios, em aceitar a doença como parte do que você é, uma espécie de identidade, do que na possibilidade da recuperação total. Eu passei sete anos convivendo com Transtorno de Personalidade Borderline e Esquizofrenia. Nos meus dois piores anos eu fui internada 5 vezes seguidas na mesma clínica psiquiátrica. Os médicos diziam na minha frente, para as enfermeiras, que eu era um caso perdido, eles achavam que eu não conseguia ouvi-los de tão severas que eram minhas crises. Eu ouvia vozes, eu via coisas, eu delirava, eu me auto-mutilava constantemente, tinha um padrão de comportamento extremamente perigoso para mim mesma, eu me odiava de um modo que não parece ser possível. Eu simplesmente não suportava viver de modo nenhum sendo eu mesma, em meu corpo. Eu fui amarrada, controlada, medicada de todas as formas possíveis. Eu tomava doses tão fortes de tantos tipos de remédios que as vezes era difícil se mexer, era difícil pensar, era difícil até controlar minha bexiga. E mesmo assim eu só piorava. Eu quase fui aposentada por invalidez. Ninguém acreditava que um dia eu poderia voltar a estudar, muito menos que eu poderia trabalhar, enfim, viver uma vida normal. Eu também não acreditava.
Não é um milagre eu estar aqui, fazendo tudo o que pessoas normais fazem. Quando você cai, todos te falam que você tem que parar de cair, dar a volta por cima e tudo mais, médicos tentam impedir que você continue caindo, a maioria dos psicólogos também, remédios fazem isso. Mas ninguém te diz que só é possível levantar depois que você terminou de cair. Como você vai simplesmente parar de cair e flutuar para a superfície magicamente? Ninguém faz isso. Você só levanta depois de chegar ao fim do poço. O caminho de volta é extremamente difícil, você tem que se agarrar as paredes, você se arranha, por vezes volta a cair, é um processo. E cada pessoa tem um jeito de fazer isso que é único e próprio.
Eu sabia que eu não ia parar de cair, eu sabia que eu não voltaria a superfície provavelmente de nenhum dos jeitos que eles estavam me dizendo. Então eu quis cair, eu quis chegar ao fim do poço. Achei que quando chegasse lá eu simplesmente iria morrer e isso seria ótimo, eu tentei suicídio algumas vezes, mas ainda faltava muito para cair. Quando eu parei de tomar todos os remédios eu estava muito mal, eu sentia que iria me perder para sempre, na verdade eu tinha certeza, mas eu não poderia viver da forma que eu estava vivendo. Talvez eu só quisesse piorar tanto a ponto de eu não ter mais nenhum resquício de consciência. A ponto de eu não ser mais uma pessoa. Não existia outra alternativa além de continuar caindo, eu não sabia o que iria acontecer, mas estava cansada de prolongar essa queda. Cansada de adiar o dia em que não restaria mais nada.
Eu parei de ir na psiquiatra, continuei com a terapia. Eu estava com uma nova terapeuta, ela era diferente. Ela não tinha medo. De mim ou do que eu poderia fazer comigo mesma. Ela não ameaçava me internar, não importava o que eu fizesse ou dissesse. Ela não ligava para quais remédios eu estava tomando ou quais eram as doses exatas e se os remédios estavam me controlando o bastante. Ela me ouvia. Não simplesmente ouvir, como os outros fazia, procurando sintomas e formas de lidar melhor com eles como se fosse uma dor de cabeça ou enjoo, que você pode lidar com formulas prontas. Ela queria me entender. Ela queria entender o que eu queria dizer ao fazer isso ou aquilo, ao sentir isso ou aquilo, o que meus "sintomas" queriam dizer. Eu aprendi que sintomas aparecem quando não conseguimos colocar as questões em palavras, nem mesmo para nós mesmos. Sintomas são nosso jeito de falar algo que não podemos dizer. São nossa estratégia de sobrevivência. O jeito que nossa mente encontrou de lidar com algo que não seguimos lidar.
Eu cheguei ao fim do poço. Ela não se assustava comigo, eu estava acostumada a deixar médicos e psicólogos assustados com meu estado. Ela nunca se assustou. Nunca demonstrou que eu poderia acabar com minha vida se fosse deixada um minuto sem supervisão. E isso foi extremamente importante. Eu entendi que se eu melhorasse, seria pelo meu próprio esforço, seria minha luta e não dela.
Eu estou a mais de três meses sem nenhum remédio. Não voltei mais a nenhum psiquiatra. Não sei dizer se eu não tenho mais nenhum transtorno psiquiátrico, para mim pouco importa como a medicina olha para meu caso. Eu não sou feliz o tempo todo, eu não tenho uma vida ótima e sem problemas, eu não sei ainda lidar com todos meus problemas. Mas isso não me desespera mais. Eu não entro em pânico mais quando eu fico mal, eu não entro em uma espiral de desespero que se auto-alimenta sem parar. Porque não existe nada de errado em ficar mal, não existe nada errado em chorar compulsivamente, não é uma doença. Nós precisamos sentir tudo o que precisamos sentir, não importa o quão terrível seja, para que possamos melhorar. Porque essa é a forma que nossa mente lida com coisas difíceis, traumáticas, aterrorizantes. Não devemos ter medo de sentir ou achar que não é normal sentir o que sentimos da forma que sentimos. Só nós sabemos pelo que passamos, só nós sabemos como e o que nós temos que sentir para suportar ou superar.
Não estou falando que você não deve tomar remédios, não estou falando que você deve fazer o que eu fiz. Não existe formula pronta e essa é a chave. Sua mente sabe o que fazer para passar por aquilo, ela já está tentando.
Não deixe que ninguém diga o que você deve fazer ou o que você deve sentir, ou como você deve sentir. Não tenha medo do descontrole.
Existe uma pesquisa que durou 20 anos com pacientes esquizofrenicos. 30 a 40% deles se recusavam a tomar remédios psiquiátricos, a absoluta maioria deles se recuperaram. Dos que tomavam remédios, só 5% teve alguma melhora.
Mas isso nenhum médico te fala. Nenhum médico quer que você acredite que existem outras formas de se lidar com o que você está passando. Eu ouvi inúmeras vezes, incontáveis vezes, que se eu parasse com os remédios eu não sobreviveria, eu não só não me recuperaria, mas pioraria absurdamente, teria que viver internada, enfim, isso se eu não me matasse, ou perdesse o movimento dos braços de tanto me automutilar. Acho que eu não preciso dizer que existe uma industria farmacêutica enorme por trás, entregando amostras grátis de drogas para psiquiatras para que eles façam seus pacientes experimentarem, ficarem dependentes, e quanto mais receitas eles dão mais esses médicos viajam, vão em congressos na Europa, ganham prêmios, etc.
É muito mais lucrativo dizer que o problema está na química do cérebro e que aquela pessoa tem uma doença como a diabetes, que precisa de remédios todo santo dia pro resto da vida.
Para aqueles que têm doenças psiquiátricas eu queria reforçar mais uma vez que não estou dizendo para pararem os remédios, só quero dizer que existem outras formas, o perigo está em não tentar nada. Para aqueles que não têm queria dizer para pararem de impor que devemos tomar remédios pro resto da vida, parem de nos ver como se nós não fossemos normais. Cada pessoa lida com as coisas de uma forma, respeite a nossa.
Assistam esse documentário foda:

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Carta para a criança que eu fui



Querida Amélia*,

Você se lembra que mesmo antes de ser capaz de se lembrar
Já tinha algo de errado
Em seu pequeno corpo de menininha
A palavra inocente não vinha
Só asco, vergonha e culpa
Repulsa
Amélia, você se lembra como doía?
Simplesmente habitar nesse pequeno corpo sujo, impuro?
Amélia você sempre sentiu como se tivesse sido marcada a ferro e fogo
Como gado
Como presa
Como a próxima vítima a ser abatida
Quando nosso corpo e mente entraram em cisão pela primeira vez?
Você se lembra?
Em que momento exatamente nos tornamos duas?
Amélia, o passado dói e eu sinto como se ele estivesse acontecendo de novo e de novo
Minha psicóloga diz que eu tenho que te amar e cuidar de você
A criança que eu fui
Mas sabe
Pequena Amélia
Pra mim
Cá entre nós
Você
Suportando toda essa violência
Você
Com esse sorriso de criança
Você realmente
Me parece incrivelmente forte

Amélia*: Codinome. Apelido de infância. Como minha vó me chamava porque dizia que eu era muito devagar, muito tranquila, muito distraída, perdida em meu próprio mundo.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Senti minha falta



Tudo estava um pouco intenso de mais. Sentia minhas emoções indo de um extremo ao outro em poucos minutos. A minha vida é um pouco assim, às vezes sinto como se já tivesse morrido, às vezes estou tão viva que até respirar dói. Não há equilíbrio. Nunca conheci nada semelhante. Meu coração dispara de repente como se eu estivesse em perigo, ou então eu quero chorar do nada,  ou então um riso nervoso toma conta de mim. Meus dedos inquietos digitam sem parar no celular, falo com muitas pessoas ao mesmo tempo quando estou assim, meio que tentando preencher o vazio dentro de mim.

Me cortei ontem, foi um desastre, fui sozinha pro hospital levar uns pontos, em 3 dos exatos 9 cortes que fiz... Sempre múltiplos de 3... Vocês lembram? Apesar de tudo... De todos os sintomas, dos cortes... Às vezes me pego feliz. Como se tivesse sentido falta sabe. Passei dois anos fugindo de mim. Faz dois anos que não sentia sintomas do borderline tão forte. Isso é um sinal de que a Sabrina está de volta. De que ela está viva aqui dentro. Não é? Preciso que ela esteja.

Senti falta de mim. Meu corpo não é mais o mesmo. Isso é o que me deixa mais triste. Eu odeio o espelho. Odeio meu corpo agora muito mais do que antes porque não sinto que ele me pertença. Queria não ter mutilado meu corpo a esse ponto. Queria voltar no tempo. Queria morrer às vezes.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Deixe ela voltar

Quero arrancar minha blusa
Mostrar esse peito
Essa cicatriz onde um dia
Ouve seios
Como quem grita e chora
De desespero
Quero poder voltar no tempo
Quero me cobrir inteira
Me esconder
De qualquer olhar
De qualquer julgar
De qualquer estranhar e perguntar
É menino
Ou é menina?
Quero dizer aos prantos minha sina
Que nasci menina
Que nunca me foi dada a escolha
Que sangrei como todas
Que me odiei  como todas
Que quebrei espelhos
Guerreei com guarda-roupas
E balanças
E que descobri tarde demais
Que todas essas regras
Existem para serem quebradas
Porque se nós meninas
Não as quebrarmos
Elas nos quebrarão
Quero dizer que me invadiram
Me habitaram
Me ensinaram
Coisas confusas e contraditórias
Queriam me dizer homem
Porque minha masculinidade
Enquanto mulher
Não era aceitável
E me fizeram acreditar que mutilar
Minha mulheridade
Seria algo empoderador
Bom
Positivo
Para mim
Para minha autoestima
Fizeram com que eu acreditasse que essa era a única forma
De eu ser feliz
De eu poder existir
Sendo homem
Eu escrevo hoje como apelo
A todas as mulheres
Que estão sendo enganadas pelo Queer
Por favor
Ainda há tempo
Para voltar atrás
Por favor
Se ame
Cuide de você
Existe outras maneiras de ser feliz
Essa não é uma delas
Automutilação e fuga não é uma saída.
Por favor
Deixe ela voltar.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Meu último post

Esse é meu último post nesse espaço. E eu estou tão feliz que esse seja meu último post. Durante anos aqui foi o lugar onde eu encontrei pessoas muito boas dispostas a me ouvir e compartilhar suas vivências comigo, foi muito bom poder desabafar aqui e ouvir também um pouquinho do desabafo de vocês, porém esse lugar não me representa mais. Como vocês podem ver, nos meus últimos posts eu tentei fazê-los entender que eu havia começado a me identificar como homem transgênero, então quem vos fala não é mais a Sabrina e sim o Samuel. Na verdade a Sabrina nunca existiu, não passou de uma máscara a qual eu criei e me escondi muito bem escondido. Eu sou um cara e estou cada dia mais feliz por ter me descoberto finalmente. O vazio no meu peito finalmente está preenchido... Os pequenos fatos na minha história finalmente se encaixam e fazem sentido. Estou feliz. E estou lutando para começar meu processo transexualizador. De qualquer jeito, eu até pensei em transformar o blog, junto com a minha transformação, (eu já estou bastante masculino, tanto que dificilmente alguém na rua percebe que eu nasci com o sexo feminino) porém recebi alguns comentários transfóbicos em algumas postagens e isso me desanimou totalmente. Se o público é transfóbico, então não há nada que eu possa fazer. Sinto muito, para vocês, que não aceitam o Samuel, a Sabrina morreu, esqueçam. Bem... E é por isso que decidi fechar o blog. Porém ele continuará no ar, com as lembranças de anos da minha difícil jornada para algum lugar, que acabou sendo para a transexualidade. Abraços, 
Samuel.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Eu não estou doente




Eu não estou doente. Eu não estou confuso. Não, isso não é só uma fase. Eu não odeio meu corpo porque eu estou acima do peso. Não é isso. Você não está entendendo. Você não está me ouvindo. Quando eu digo que sou um homem, eu sou um homem. Independente do meu corpo, independente da criança de cabelos compridos que me olha na foto do meu RG. E independente do nome que me registraram que não me representa mais. É, independente de tudo isso. É tão difícil assim entender? Eu sou o que quero ser. Eu sou o que sinto ser. Eu sou o que minha mente, com todas as forças, me diz ser. E eu amo ser assim. Não é uma escolha, é só o que, na minha mais pura essência, eu sou. Você diz que as pessoas não se tornam transexuais "do nada". É verdade, você tem toda a razão. Eu não "me tornei" transexual "do nada", me admiro da sua incapacidade de notar meus sinais. Eu que deveria ser uma pessoa tão próxima sua. Você nunca nota nada. Nunca notou que eu gostava de meninas, nunca notou minha inclinação e fascinação pelo mundo masculino, nunca notou nada que me aconteceu a vida inteira... Ou eu sou o melhor mentiroso do universo ou tem gente que andou ocupada demais para me notar.

Eu não sou um projeto de vida que deu errado, não sou alguém que se desviou do caminho que deveria trilhar, não sou uma criança que está sendo influenciada a ser desse modo (que absurdo, quem teria o poder de influenciar alguém a ser transexual?). Sim, não me dou bem com regras sociais, mas e daí? Isso não quer dizer que eu estou ou sou doente. E se seu deus me odeia, o meu me ama, ele me ama pelo que eu sou por dentro e não o que eu sou por fora. E se ele me fez assim, deve ter um bom motivo, como por exemplo te ensinar a não ser tão preconceituosa e mente fechada.

As coisas que você fala... Sabe, machucam. E eu fico quieto porque não quero brigar. Você não quer que eu frequente os lugares onde eu encontro conforto para ser quem eu realmente sou, você não quer que eu veja as pessoas que me aceitam como eu realmente sou, as pessoas que são como eu e me entendem como ninguém. Mas se eu não tiver isso... Onde eu encontrarei apoio e forças para suportar o mundo sendo o Samuel? Minha psicóloga se recusa a me chamar pelo meu nome correto, se recusa a me tratar no masculino... Ela não me dá mais forças ou apoio. Eu preciso ir para o CRD e para o CRT, lá ninguém nem sabe meu nome de nascimento, simplesmente porque a sabrina não existe. Samuel existe, Samuel está vivo e quer viver, com todas as minhas forças. E se Samuel não puder existir... dessa vez, não haverá nenhuma sabrina para viver no lugar.